Arquitetura do insano
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Até os nove anos de idade, Nonô Noleto nunca havia tido contato com a loucura enclausurada. Foi apenas em 1957, quando ela se mudou de Iporá para Goiânia, que aqueles olhos ainda infantis viram pela primeira vez a “casa de muros altos e amarelos” — que logo se tornou uma incógnita e preocupante imagem em sua cabeça.
O Hospital Psiquiátrico Professor Adauto Botelho ficava situado ao lado do posto fiscal onde o pai de Nonô trabalhava. Era entre as visitas que ela fazia no trabalho do pai e o caminho que percorria para buscar leite no posto de laticínio em frente a unidade de saúde, que foi-se tecendo a imagem daquele espaço “onde ficavam os loucos”.
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Até aquele momento de sua vida, Nonô, que hoje tem 72 anos, não tinha dimensão do que representava o espaço. Tudo era envolto na fantasia e criatividade de criança. Quando chega à cidade em 1957, ela conhece uma capital que havia sido fundada apenas 15 anos antes. Embora não soubesse, os altos muros amarelos falavam muito sobre a concepção de cidade que seria seu lar até os dias de hoje.
Nas palavras do interventor Pedro Ludovico Teixeira, Goiânia, a cidade Art Decó, nasceu como o “farol para iluminar” rumo ao “progresso”, sendo idealizada para ser a nova capital do Estado. Para ele, não bastava um povoado em um novo lugar geográfico e de arquitetura planejada, era necessário constituir outras representações do povo goiano e, nesse processo, precisava-se também “mudar os comportamentos da sociedade”, considera o historiador Éder de Paula.
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Médico, o interventor Pedro Ludovico comparou a antiga capital do Estado, a cidade de Goiás, a um doente, sustentando ser a chaga territorial o empecilho para o desenvolvimento. A cura? Uma cidade organizada com uma política que entre suas filosofias tinha a eugenia como pilar. Teoria importada da Europa, a eugenia defendia ser possível o melhoramento da raça humana, caminho para conseguir cooperação de todo corpo social para alcançar o progresso. Quem ousasse não ser produtivo deveria ser afastado para assim não contaminar o restante da sociedade.
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No caminho traçado para alcançar a modernidade, os obstáculos irreparáveis eram aqueles classificados genericamente como “loucos”. Como resposta à questão, já na efervescência conturbada da Era Vargas, surge o Serviço Nacional de Doenças Mentais (SNDM), o terceiro órgão criado para tratar de políticas de saúde mental desde a proclamação da República. Liderada pelo médico psiquiatra Adauto Junqueira Botelho, a pasta adota o objetivo de expandir a rede psiquiátrica do país. A receita não era nova: criar unidades para asilar pessoas com transtornos mentais, isolando-as do resto da sociedade - para que ou fossem reparadas ou excluídas permanentemente do convívio social.
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Primeiros anos de Goiânia em fotos
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A novidade era a expansão da rede chegar, com um grande hospital, ao centro do país. Outras pequenas entidades, todas ligadas à instituições espíritas, já atuavam com o asilamento de pessoas com sofrimento ou transtornos mentais em Goiás nas primeiras décadas do século XIX, mas com menor estrutura.
Antes disso, a figura do "louco" em Goiás não tinha uma definição bem estabelecida, explica a psicóloga professora do Departamento de Saúde Coletiva da Universidade Federal de Goiás, Larissa Arbués. Os registros mais antigos dão conta de uma história que tinha participação desses indivíduos na sociedade, fazendo pequenos trabalhos e sendo reconhecidos por apelidos. A mudança definitiva nessa relação aponta na década de 1950, quando surge de forma concreta a proposta de trazer para Goiânia um dos grandes hospitais do SNDM. Para Éder de Paula, dentro do contexto da eugenia e da busca por alcançar o progresso, o hospital teria a função de estabelecer uma linha divisória entre o normal e o anormal.

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No final da tarde do dia 04 de abril de 1954, um domingo, exatamente às 17 horas pelos registros de jornais, é inaugurado no Setor Leste Vila Nova, em Goiânia, o Hospital Psiquiátrico Professor Adauto Botelho. A cerimônia contou com representantes de todos os poderes, ministros, secretários de Estado e, claro, Adauto Junqueira Botelho, a partir dali eternizado no nome do Hospital. Entre os discursos, um chama a atenção e retoma toda a contextualização feita até chegarmos aqui. Como quem não tem o que esconder, o então secretário da Saúde do Estado agradece aos poderes e afirma:
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“Sintetiza-se nestas palavras, o zelo de um homem pela vida de nossa gente, e definem-se os propósitos do Governo de promover o aperfeiçoamento da nossa raça”
- José Peixoto da Silveira, então secretário de Saúde do Estado.

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Os aspectos fundamentais que se apresentam nas memórias da fundação da capital são os mesmos a aparecerem na história do Hospital Adauto Botelho. E não por coincidências narrativas, os ideais dos gestores públicos e o manicômio são partes sólidas de uma mesma coisa — uma responde à outra. E, assim, as duas histórias se entrelaçam, sendo fundamental entender ambas para compreender alguma em um nível aprofundado.
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O caminho de Nonô se cruza mais uma vez com o Adauto Botelho em 1970, quando, já na faculdade, entrou pela primeira vez no espaço. Na planejada Goiânia, Nonô Noleto vê, quando entra “no lugar onde ficavam os loucos”, uma estrutura física que ela relaciona diretamente com o medieval, o oposto do novo pretendido pela Art Decó, arquitetura que tem o moderno como base.
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Entrada do Hospital Psiquiátrico Professor Adauto Botelho
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