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O médico psiquiatra Abrão Marcos da Silva não gosta muito de relembrar sua própria história, de seu particular se limita a algumas considerações que não passam de uma frase de duas linhas. Ele diz que não houve um momento específico em que escolheu a especialidade. Para ele, o cuidado com a mente é inerente à medicina e por isso a decisão se deu de maneira “natural”. Abrão Marcos entrou na faculdade em 1967 e, dois anos depois, começou o esperado primeiro estágio em psiquiatria. Até ali, a visão que tinha da área era “qualquer coisa romântica”, como define após um evidente exercício mental de relembrar o porquê de sua paixão.

Ao chegar ao Adauto Botelho, o local do estágio, a angústia invadiu seu peito. O romântico sonhador foi fisgado pela realidade. “Então a psiquiatria é isso?”, se questionou ao ver um mar de pessoas nuas, cheias de lepra e tuberculose vivendo em uma estrutura enlouquecedora para qualquer um que se considerasse dentro do círculo divisor do normal. Ele não voltou na semana seguinte.

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A experiência o marcou de tal modo que, em um ato extremo, o estudante trancou o curso por um ano e repensou se realmente queria ser médico. Após esse período, voltou para a faculdade e decidiu que faria clínica-geral, mas novamente mudou de trajetória no ano seguinte. Ele conta que a chegada de um novo médico a Goiás, o carioca Wassily Chuc, no ano de 1969, trouxe uma melhoria para a psiquiatria goiana, o que o empolgou. Decidiu retomar o desejo pela área, voltou para o Adauto, onde seria — em uma sequência de sucesso — primeiro plantonista, depois diretor-técnico e por fim o diretor-geral de toda a estrutura.

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Galeria de imagens | Fotos: Kim-Ir-Sen

As melhorias que teriam chegado ao Adauto Botelho em 1969 foram mínimas, reconhece Abrão Marcos. Itens básicos como chuveiro eram possíveis para alguns, embora a maioria seguisse se limpando com água que saía de mangueiras. As chamadas celas fortes, pequenas salas fechadas com porta de material reforçado, eram uma realidade, diz o médico. Os cubículos foram e voltaram durante as décadas de existência do Hospital e serviram para prender pessoas em maior agitação. No local, o paciente tinha um espaço para as fezes e urina, cama e um buraco por onde recebiam comida.

A estrutura construída para receber pouco mais de 200 pessoas foi expandida em número de prédios ao longo dos anos, mas o espaço originalmente de 90 mil m² foi reduzido para 20 mil m² e, de toda a área, 7 mil m² eram ocupados por construções de enfermarias e dormitórios que, no auge da ocupação, chegou a receber 800 pessoas. Quando chegavam à unidade, todos eram um só, uma massa. A divisão espacial se limitava a uma ala masculina e uma feminina: ou você era uma mulher louca ou um homem louco. Qualquer outra subjetividade era desnecessária, incluindo a necessidade de medicação, que por vezes era igual para todo mundo.

A parte médica organizada em enfermarias tinha, em cada uma, um psiquiatra acompanhado de equipe de enfermagem para a assistência rotineira. Havia também psicólogos e uma pequena quantidade de assistentes sociais. Um clínico-geral também estava na lista de contratados —  esse profissional era responsável por avaliar problemas diversos dos pacientes. Como um lugar que asilava pessoas por meses, anos e décadas, doenças comuns como resfriados, infecções e outros males estavam no cotidiano do Hospital — em princípio esses problemas eram tratados fora do Adauto Botelho, mas posteriormente um pronto-socorro ligado à Unidade passou a se encarregar também dessa parte.

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Além do fator político, que encontrou o isolamento como ferramenta, o Hospital serviu para que as elites econômicas da capital constituíssem o lugar enquanto espaço de filantropia. “Nunca teve o necessário para funcionar como hospital. Mas funcionava como asilo”, diz Abrão Marcos. Enquanto a estrutura física e todas as demais condições do lugar gritavam o desprezo e a falta de recursos regulares, se tornou tradicional que primeiras-damas visitassem a unidade para doar cobertores e lençóis ao Hospital.

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Foto: Kim-Ir-Sen

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Os pacientes, com seus perfis diversos, chegavam não só de cidades do interior de Goiás, como também de Estados como Pará, Bahia e mesmo Minas Gerais, que à época contava com um grande hospital psiquiátrico, o Colônia, de Barbacena, que já teve sua rotina de horror narrada e é a unidade manicomial mais conhecida do país. Segundo o psiquiatra Abrão Marcos, dos 800 pacientes que estavam no Adauto Botelho no auge da ocupação, pelo menos 40% não eram de Goiás.

As vias de hospitalização eram diversas. As mais comuns eram as internações por meio de recomendação médica após atendimento no ambulatório, encaminhamentos feitos pela polícia ou através de pedido vindo dos próprios pacientes — casos raríssimos aconteciam.

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A Unidade só atendia adultos, segundo afirma o ex-diretor. Tanto homens como mulheres são identificados como pessoas em sua maioria “jovens e negras”. Segundo Abrão Marcos, o Hospital mantinha pacientes com os mais variados diagnósticos, mas os casos mais frequentes de se encontrar eram aqueles com esquizofrenia. Muitos eram internados porque o comportamento causava vergonha para a família, que não sabia lidar com as crises, relata o ex-gestor do Adauto Botelho.

Na visão geral, a enfermaria de mulheres era maior dentro do Hospital. No entanto, a Unidade também abrigava um grupo de alcoólatras, no qual o número de homens prevalecia. Entre os alcoólatras havia autonomia maior, lembra Abrão Marcos, que diz que após algum tempo internados, esses pediam para deixar o local e eram liberados pela equipe médica. 

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A psicóloga pesquisadora Railda Barreto, de 28 anos, dedicou a sua pesquisa de mestrado às relações familiares e de gênero manifestadas em prontuários médicos do Hospital Adauto Botelho. Railda Barreto conta que dos 58 prontuários que ela analisou, 30 eram de mulheres e, comparando os discursos, notou que a narrativa utilizada nas internações das pacientes em muito se diferenciavam dos relatos encontrados nos documentos dos pacientes homens. "Existe uma cara da loucura feminina”, destaca a pesquisadora. Enquanto nas internações da ala masculina são ressaltados quadros psicopatológicos e de alcoolismo, nas internações de mulheres, havia um “movimento de diagnósticos”, que mudavam no decorrer do próprio tratamento.

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Durante esses episódios, era pedido aos funcionários que trouxessem "alguém com esquizofrenia” e, então, uma pessoa com tal diagnóstico era chamada para desfilar ante aos olhos dos alunos curiosos, enquanto eles observavam e faziam perguntas. Alguns chegavam a ser analisados através das janelas, durante suas crises.

As vozes das mulheres internadas surgiam nos prontuários na forma de contestação sobre o diagnóstico. Railda Barreto narra um caso que avaliou, no qual a paciente relata grande tristeza com a internação e justifica que o marido havia a internado para manter um caso com outra mulher.

Railda destaca que nos diagnósticos das mulheres havia grande ênfase na vida doméstica. “Elas não eram boas mães, boas donas de casa, não eram boas esposas, não eram boas filhas”, pontuou. Os prontuários das pacientes eram muito mais pautados em questões morais atreladas aos papéis de gênero.

Em seu trabalho, Railda Barreto apresentou “O caso Joana”, identificado no prontuário nº 1.364. A mulher de 32 anos foi internada no Adauto Botelho em 1979, a pedido do marido. Na descrição do documento, o homem relatou que a esposa perambulava “sem rumo e sem destino, esquecendo por completo as obrigações maternas e de esposa”. Além disso, o marido relata que Joana fazia as tarefas domésticas fora do horário, como passar a noite dando banho no filho. Em razão disso, ele solicitou, mais de uma vez, que a polícia levasse a mulher para o hospital psiquiátrico.

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Foto: Kim-Ir-Sen

Foto: Kim-Ir-Sen

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Foto: Kim-Ir-Sen

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Foto: Kim-Ir-Sen

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No auditório do Adauto Botelho, Heloiza Massanaro presenciava cenas assombrosas durante as aulas de Psicologia da Universidade Católica de Goiás (UCG), entre 1975 e 1981. O choque e o temor, conta a psicóloga e hoje ativista da luta antimanicomial, eram indescritíveis quando o professor fazia uma espécie de “exposição da loucura”.

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Foto: Kim-Ir-Sen

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Med. e Saúde Psiquiátria DVD 05 Acervo 0

Foto: Kim-Ir-Sen

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Foto: Kim-Ir-Sen

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Foto: Kim-Ir-Sen

No interior do Hospital, a repulsa se prolongava. Em uma visita guiada, a psicóloga relata que sentia o cheiro “característico de abandono”. Uma mistura dos odores de urina e fezes que, por sinestesia, identificavam os maus-tratos e a falta de alimentação. Ela relembra que a comida dos pacientes era “arroz com mosca”, como se eles “fossem menos pessoas”.

Pouco a pouco, ao resgatar as memórias que presenciou no Hospital, Heloiza Massanaro busca as palavras certas para descrever o que via. “Abandono”, “desconsideração”, “temor”, “assombro”, são alguns dos substantivos que nomeiam o que, na época, era assumido como adequado.

A medicação, explica Massanaro, deixava de ser atualizada e, por isso, também deixava de atender as necessidades dos pacientes. “O conhecimento não permitiu fazer diferente”, avalia a psicóloga, que vê no constante investimento em pesquisa a chave para atenuar os erros. Com os medicamentos precários, o Hospital se consolidou como um espaço apenas de enclausuramento para quem, aos olhos da sociedade, não poderia conviver em liberdade.

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Sem o tratamento adequado, os pacientes viviam na política do enclausuramento e da contenção. Eram submetidos ao eletrochoque, porque, segundo as psicólogas Heloiza Massanaro e Larissa Arbués, não se tinha vasto conhecimento sobre o que fazer diante dos momentos graves de perturbação. E o “não saber o que fazer”, segundo Heloiza Massanaro, levou às mais duras formas de intervenção psiquiátrica.

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O psiquiatra Abrão Marcos conta que o tratamento no Hospital era suportado em três pilares: medicamentoso, psicoterapia e eletroconvulsoterapia — o eletrochoque. Esse último, para ele, tinha uma aplicação distorcida em razão da falta de preparo dos funcionários e por isso se tornou um elemento polêmico na história do Adauto Botelho. O tratamento medicamentoso, conforme sua visão, também era deturpado em razão da falta de fornecimento dos remédios adequados. “A gente às vezes precisava de antipsicótico e eles mandavam antidepressivo, porque era o que eles tinham lá”, conta Abrão Marcos.

Para quem não tinha um olhar naturalizado e visitou a Unidade, o impacto sobre os tratamentos foi mais estarrecedor. Aos 69 anos de idade e uma experiência como fotógrafo que ultrapassa os 50 anos, Kim-Ir-Sen tem entre as vivências que marcaram sua vida profissional, as idas ao Hospital Adauto Botelho. O fotógrafo fez parte da equipe de cinegrafistas convidados por Abrão Marcos para registrar o dia a dia da Unidade na década de 1980, quando já tinha assumido como diretor-geral.

Ele se recorda dos corredores lotados de pessoas nuas que dividiam vários dos espaços com uma população de moscas dez vezes superior em número de indivíduos. A maior parte das lembranças está, de forma fragmentada, no documentário Passageiros da Segunda Classe, único registro em vídeo da rotina interna do Adauto Botelho.

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A memória que Kim-Ir-Sen fez questão de destacar foi o dia de gravar a eletroconvulsoterapia. Ele narra que o espaço era uma salinha escura. Na visão dele, havia um certo castigo na forma em que o procedimento era feito, já que muitos funcionários, que na época passavam meses sem receber, encaminhavam internos para o local como forma de punição após algum ato que supostamente atrapalhasse o dia a dia profissional. “Às vezes um paciente estava muito revoltado, dava muito problema. Imagina essas pessoas que estavam seis meses sem receber, essas pessoas ficavam irritadas com isso”.

Cena do documentário Passageiros da Segunda Classe | Kim-Ir-Sen

Com a mesma perspectiva, Heloiza Massanaro diz que não acredita na eletroconvulsoterapia como forma de tratamento. Para ela, o fato do procedimento já ter sido usado como forma de tortura já provoca dúvidas sobre a arbitrariedade que pode ser exercida na prática.

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Negando ser uma visão institucional, o ex-diretor Abrão Marcos discorda de que a eletroconvulsoterapia tenha sido fundamentada em castigo. No entanto, destaca que a truculência acabava fazendo parte da relação entre funcionários e pacientes, diante da rotina de estresse.

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Abrão Marcos sustenta que, ao longo dos anos em que trabalhou no Adauto Botelho, houveram iniciativas para se introduzir a terapia ocupacional no cotidiano de tratamento. O método, considerado mais humanizado, encontrou obstáculos de aplicação diante dos recursos escassos. “Os psicólogos tentaram muitas e muitas vezes fazer festinhas com os pacientes, lazer. O pessoal era agrícola e a gente incentivava a cultivar plantas. Havia um terapeuta ocupacional, embora fosse um só, para um hospital que tinha 700 e tantos pacientes. Era impossível fazer algo”.

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Abrão nas dependências do Adauto Botelho em 1985 | Foto: Arquivo Abrão Marcos

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