“Abandono” é a palavra que mais perpassa as diversas narrativas de quem resgata as memórias do Hospital. Está intrínseca às histórias sobre o cotidiano, à medicalização, às roupas, à estrutura e aos personagens que fizeram parte do Hospital. O abandono está em tudo.
O ex-paciente conta que algumas imagens daquela época ficaram marcadas na sua memória, sobretudo as que se referem ao tratamento e às dores de amigos e amigas que também se tratavam no Hospital.
Sebastião de Paula Vieira, hoje com 59 anos, esteve internado no Hospital Psiquiátrico Adauto Botelho em 1990, onde permaneceu por cerca de um ano e meio. Na época, ele vivia com as irmãs e foi encaminhado para a Unidade para tratar esquizofrenia. Cerca de 32 anos após a experiência no Hospital, Vieira conta que ainda tem lembranças muito vívidas do que presenciou no curto período em que ficou asilado no lugar.

Abandono, luta, fim
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Sebastião de Paula Vieira, ex-paciente do Adauto Botelho
Foto: Arquivo Pessoal
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Durante os 13 dias em que ficou no Adauto Botelho para gravar o documentário, o fotógrafo Kim-Ir-Sen conversou com muitos pacientes. Entre as narrativas, um ponto comum: “Todos, de cabo a rabo, falavam que queriam sair do Hospital. Dos mais aos menos loucos, o sonho compartilhado era sair de lá”. A sensação que teve foi de que a maior parte dos que estavam internados não deveriam estar lá e, logo entendeu se tratar de pessoas que não estavam em tratamento, mas que foram abandonadas.
Entre as histórias que ouviu pessoalmente, estão as de mulheres que afirmavam estar lá a mando de seus maridos em razão de disputa por herança. “Algumas pessoas realmente tinham um probleminha simples, um problema que poderia ser resolvido dentro de casa com um pouquinho de carinho, um pouquinho de remédio simples”, diz.
Cena do documentário Passageiros da Segunda Classe | Kim-Ir-Sen
Foto: Kim-Ir-Sen


Foto: Kim-Ir-Sen
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Com o acúmulo de relatos, a constatação sobre o abandono sofrido pelos pacientes foi dolorosa. Ele diz que muitos não recebiam visitas há anos e os dias de novos rostos na Unidade quebraram a monotonia agitada da solitária rotina do local superlotado. Alguns aproveitaram a oportunidade para desabafos, mesmo que as lamentações não pudessem resultar em efeitos imediatos e tenham se limitado a isso: lamentações.
Quando falamos dos pacientes hospitalizados com transtornos psiquiátricos, podemos pensar em uma certa passividade e ausência de noção da realidade imposta. Mas a premissa não é verdadeira. A maior parte dos internos tinham noção das suas histórias, do que haviam perdido e da posição em que se encontravam naquele momento.
Heloiza Massanaro conta que quando adentrava o Adauto Botelho, logo alguém se aproximava para pedir para ir embora com ela ou pedir objetos como batons e roupas coloridas. As vestimentas dos internos eram roupas “cor de nada”, conta a psicóloga.“Um cinza claro com aquela cor de nada e um carimbo preto. Aquela era a roupa de todo mundo, às vezes nem tinha peças íntimas, era só um camisolão. Para os homens, uma camisa um pouco mais curta e um short”, relembra.
Para Heloiza Massanaro, esse desejo por objetos que vinham “do mundo de fora” revela que, além de terem consciência de que não deveriam estar ali, também tinham consciência de que não possuíam nada referente à individualidade.

Foto: Kim-Ir-Sen
Quando analisou os prontuários de pacientes do Adauto Botelho, a pesquisadora Railda Barreto notou a ausência da família no processo de tratamento. Os documentos mostraram que os parentes assumiam um papel de protagonismo no processo de hospitalização, mas, logo após, saíam de cena.
Pela análise do psiquiatra Abrão Marcos, é possível chegar a duas conclusões sobre o que estava por trás do abandono parental. Para além do preconceito com um parente com algum transtorno mental, o fator econômico é descrito como fundamental para entender o quadro que se dava na relação paciente e família.
“Muitas pessoas sem nomes passaram por ali”, conta Railda Barreto. Essa falta de identificação causava ainda mais obstáculos para a instituição localizar os parentes. “A gente pode deduzir que naquele primeiro momento, a instituição não sentiu a necessidade de buscar esse suporte com a família. O que muda depois, mas talvez, para alguns, já era tarde demais”, analisa a pesquisadora.

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Foto: Kim-Ir-Sen

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Foto: Kim-Ir-Sen
Heloiza Massanaro lembra que durante o funcionamento do Adauto Botelho, algumas iniciativas foram tomadas para mudar o modelo de asilamento. “Alguns profissionais que já estavam lá faziam a reflexão e se incomodavam com aquela situação”, pontua a ativista. Foram promovidos debates e conversas sobre os pacientes, nos quais se pautavam as subjetividades de cada um, essas iniciativas caminhavam simultaneamente com o processo de reforma psiquiátrica.
A partir das discussões, foi criado o Hospital Dia, uma extensão do Adauto Botelho na qual as pessoas com transtornos psiquiátricos passavam o dia fazendo o tratamento e voltavam para casa ao fim do dia. Essa iniciativa, apesar de muito incipiente, promoveu grandes reflexões sobre as formas de tratamento.
Abrão explica que a iniciativa do Hospital Dia ocorreu durante a sua gestão. Nesse modelo, os pacientes ficavam das 9h às 17h em tratamento. Ele pontua que houve toda uma transformação nesse período, inclusive com relação ao planejamento, pois se tornou obrigatório fazer um planejamento anual com o tipo de projeto aplicado no Hospital e a verba que poderia ser gasta na aplicação.
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Até meados da década de 1970 não existia um pensamento que se colocasse, de forma organizada, contra o modelo de assistência psiquiátrica em vigor. Para o historiador Éder de Paula, os anos de silêncio sobre a questão fizeram com que a sociedade da época comprasse a narrativa de que os lugares serviam como ferramenta de saúde pública. O quadro muda, no entanto, de acordo com a publicização do dia a dia das instituições manicomiais. As denúncias sobre o Adauto datam já do início da década de 1960. Uma matéria divulgada em 21 de fevereiro de 1961 pelo jornal “Folha de Goyaz” destaca:
"[...] a reportagem foi procurada ontem por uma senhora que esteve naquele nosocômio, sentindo a miséria e a arbitrariedade que ali ocorrem; onde os internos passam privações de toda natureza, principalmente da alimentação, higiene e leito; além da maneira péssima com que são tratados. Adiantou ainda que uma enfermeira do hospital garantiu haver dezenas de tuberculosos"
O médico psiquiatra Abrão Marcos, o mesmo que dedicou parte de sua vida entre atendimentos e gestão no Adauto Botelho, esteve no V Congresso Brasileiro de Psiquiatria, considerado um marco da reforma psiquiátrica ao ser o primeiro evento médico a firmar um documento pela extinção de manicômios no país. No evento, ocorrido em Santa Catarina em 1978, ele foi um dos signatários da carta que manifestava contrariedade com o modelo em vigor na época.
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Heloiza Massanaro, a psicóloga que teve seu contato com Adauto Botelho na graduação, primeiro seguiu caminho que a colocou distante da realidade dos "loucos enclausurados" por alguns poucos anos. Mas, já como profissional, se aproximou do movimento sindicalista e alguns meses depois fundou em Goiás o Conselho Regional de Psicologia (CRP) na década de 1980. Foi a partir do CRP que iniciou o movimento pela reforma psiquiátrica ao lado de outras figuras da área. Queria o fim da estrutura de atendimento que mantinha as características que a horrorizaram na faculdade. O movimento era parte de uma mobilização nacional que se eclodiu nos anos anteriores, organizada entre funcionários dos hospitais psiquiátricos, entidades de saúde, pacientes e familiares.
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Criação do Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM)
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1978
A pesquisadora Railda Barreto define as mudanças no modelo como “um processo social complexo”. “A gente tinha, politicamente falando, o movimento de redemocratização. Na área da saúde pública a gente tinha o nascimento do Serviço Único de Saúde, a reforma sanitária”, elenca aspectos da conjuntura que era impulsionada também pela articulação do movimento antimanicomial pelo país.
LINHA DO TEMPO DO MOVIMENTO ANTIMANICOMIAL
(passe o mouse por cima de cada marco)
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Assinatura da Portaria Interministerial nº 1369, que estabeleceu as diretrizes para a atuação em saúde mental no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS)
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1979
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1987 - Criação do Primeiro Centro de Atenção Psicossocial
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1989 - Apresentação do Projeto de Lei 3657/89, de Paulo Delgado, que previa a extinção dos manicômios no Brasil (transformado na Lei Ordinária 10216/2001)
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1987-1989
1991
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Publicação da portaria 189/1, que viabilizou a construção dos serviços de atenção psicossocial no país
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Congressos, diálogos políticos, elaboração de propostas. Viagens a Brasília sob pressão em discussões de propostas apresentadas ao Legislativo Federal que estruturavam o fim do modelo em vigor. Guerra contra interesses escusos. Uma parte importante da vida de Heloiza Massanaro foi dedicada ao movimento. “No fundo nada disso eu planejei. Eu me permiti ser tocada”, conta. Em uma das viagens para fóruns de discussão, na paradisíaca Paripueira, em Alagoas, a psicóloga quis fazer um gesto diferente, decidiu que levaria usuários do serviço psiquiátrico para falar no evento. Levou um usuário que tinha a França como elemento mais forte nas alucinações. Não precisou atravessar o oceano para sentir-se completo.
"Em frente ao mar, que olhar, que coisa linda. Ele sentado na areia e contando como estava se sentindo. É uma perversidade segregar alguém, impedir alguém de desabrochar, de ser o que é, de se mostrar por inteiro"

2001
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Promulgação da Lei 10216 (Lei da Reforma Psiquiátrica ou Lei Antimanicomial)
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Como todo movimento social, o antimanicomial encontrou resistências, seja de conservadores ao sistema em vigor, seja de interesses econômicos. Desvencilhar do que era a única estrutura apresentada até aquele momento não estava em um horizonte próximo. “Porque essa questão da saúde mental e a maneira como ela é conduzida, ela também é um projeto, assim como o sistema penitenciário”, considera o historiador Éder de Paula. Faltava vontade, sobrava vista grossa.
É nesse sentido que se pode atribuir à ditadura militar um obstáculo que fez com que a estrutura se perpetuasse mesmo com o fracasso iminente do modelo. Embora haja menções de que o período pós-golpe tenha inaugurado o uso político para prender adversários, faltam documentações ou relatos que sustentam ter havido novas características durante a ditadura. É, porém, possível inferir que a falta de liberdade de imprensa impediu que a realidade da instituição ganhasse visibilidade suficiente para que, assim como ocorria em outras partes do mundo na década de 1980, começasse a mudar efetivamente.
Aliado à ausência de ampla divulgação, haveria, segundo Éder de Paula, indícios de um caráter cultural do aprisionamento entre os brasileiros, o que também responderia sobre o longo tempo de manutenção do modelo. “Aquela pessoa dá trabalho, aprisiona ela lá. Automaticamente você percebe que há um processo cultural de trancar as pessoas e não querer saber se ela está recebendo tratamento. Eu não quero que ela dê o trabalho que ela tá dando”, considera o pesquisador.
Quando a conjuntura é afunilada, Goiás parece ter aspectos ainda mais retrógrados mesmo em comparação com a política nacional. Reportagens do jornal O Popular do início década de 90, mostra que, enquanto o resto do país discutia desconstrução dos sanatórios e possibilidade alternativas, o Estado ainda falava em ampliação do Adauto Botelho.







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Ainda na década de 1980, quando, após uma crescente onda de denúncias fortalecida pelo movimento antimanicomial, o Ministério da Saúde dá um prazo para as instituições se adaptarem. Nessa fase, a suspeita é de uma espécie de lobby entre gestores públicos e donos de hospitais psiquiátricos para manter os locais. A proposta era modificar as estruturas físicas das unidades, mas mantê-las com o caráter asilar. A proposta de lei pelo fim dos manicômios já estava em tramitação e o prazo do Ministério se estendeu de acordo com a letargia que o texto caminhava no Congresso.
Com o prazo dado à gestão do Adauto Botelho vencido, uma comissão do Ministério da Saúde visita a Unidade e aponta que as alterações necessárias não foram cumpridas.




Galeria fotos Adauto Botelho 1985 | Fotos: Arquivo Abrão Marcos
Nos anos finais do Hospital, houve tentativa de tratar os últimos gestores como bode expiatório, como culpados por todo o problema registrado, aponta Éder de Paula. Com o veredito do Ministério da Saúde de que a unidade não conseguiu se adaptar, se encerram em 1994 todas as atividades do Adauto Botelho.
Dos internos que permaneciam asilados, parte voltou para o convívio da família, mas outros 210 foram divididos em abrigos. No levantamento atual, 26 deles vivem em instituições da Região Metropolitana de Goiânia, sendo dois no Complexo Sagrada Família; dois no Hospital Dermatologia Sanitária (HDS); nove na Vila São Cottolengo e 13 vivendo permanentemente em casas ligadas a Centros de Atenção Psicossocial. Confira no mapa: