Após o fechamento, o Adauto Botelho continuou a ser pauta de polêmica. Já vazia, a estrutura da Unidade foi disputada entre um movimento que queria torná-la museu de memória e a Sociedade Goiana de Pecuária e Agricultura (SGPA), que queria transformar o espaço em um centro de exposições de pecuária. O então governador Maguito Vilela, hoje falecido, estava ao lado da SGPA e queria a estrutura derrubada para dar lugar a um lugar destinado a festejos sertanejos - festas que seriam realizadas sobre o solo marcado por dor e sofrimento.
A disputa se estendeu entre 1994 e 1996, quando, por fim, Maguito Vilela decide demolir todas as estruturas para dar lugar à SGPA. “Infelizmente passaram uma patrola por cima do Hospital”, lamenta Abrão Marcos. Apesar disso, o acordo não prospera em razão de imbróglios jurídicos. O local fica vago até o ano de 2001, quando dessa vez o então governador Marconi Perillo decide construir o Centro de Reabilitação e Recuperação (CRER) na área.
Galeria de imagens | Fotos: O Popular
Ainda em funcionamento, é no CRER onde atualmente se encontra um dos poucos vestígios físicos do prédio do Adauto Botelho. O governo de Maguito Vilela manteve cerca de 10 metros da antiga fachada. Hoje, o esqueleto do muro alto se esconde entre várias árvores, no meio de um estacionamento, sem fazer muita questão de ser visto. Uma placa discreta, já deteriorada pelo tempo e que na maior parte do tempo fica atrás de carros estacionados, informa: “Neste local funcionou o Hospital Psiquiátrico ‘Adauto Botelho’ de 1954 a 1996. Nossa homenagem aos profissionais que nele trabalharam e aos pacientes que por ele passaram”.
Galeria de imagens | Fotos: Luiz Araújo e Thauany Melo
Em visita ao local, vários populares foram perguntados se tinham informações quanto ao que seria o resto de muro da antiga unidade. De sete pessoas com vários perfis, nenhuma soube associar a ruína a nada próximo de um hospital psiquiátrico, tão pouco citaram o nome Adauto Botelho. “É o resto de uma construção inacabada”, disse um homem que trabalha em frente ao local há 10 anos. Um vendedor ambulante que trabalha na porta do CRER há seis anos se quer já tinha se questionado sobre o resto de muro que fica a poucos metros de onde vende pipoca todos os dias.
Os arquivos e prontuários da antiga Unidade estão espalhados. Durante a entrevista com o médico psiquiatra Abrão Marcos, ele informou que guarda em uma chácara parte de relatórios que construiu ao longo dos anos. A maior parte dos prontuários está armazenada no único hospital psiquiátrico da capital goiana atualmente, o Hospital Wassily Chuc. É lá que pesquisadores como Railda Barreto puderam entender mais sobre as histórias que perpassaram o dia a dia do Adauto Botelho. Dos três entrevistados que conheceram o arquivo, todos são taxativos nas considerações sobre a situação em que os documentos são armazenados: desprezo pela história.
O cheiro de mofo que toma conta dos prontuários divide espaço com os outros odores da história de horror registradas durante 40 anos. Não há uma organização, o historiador Éder de Paula contou que faltam prontuários de vários anos e a desorganização é de tal modo que há desmotivação para manuseá-los. Apesar de a Secretaria Municipal de Saúde (SMS) dizer que há um projeto para digitalizar os arquivos, falta uma estimativa de quando isso será feito.
Além do desprezo pela história, há um sentimento de que os gestores da Saúde impõem obstáculos para que o acesso à história da unidade permaneça sem ser contada com todos os detalhes. Não há levantamento de quantos morreram, de quantos passaram por lá, de quanto tempo exato cada um ficava.
Para acessar a história pela metade, já que faltam documentos de vários anos, há uma etapa de burocracias que pode ultrapassar seis meses - e só é autorizado dependendo da finalidade e mediante regras rígidas. Railda Barreto, por exemplo, não pôde tirar nenhuma foto dos prontuários ou da sala. Não parece ser uma burocracia organizada, pensada para tal, pelo contrário, o sentimento é de que o poder público encontrou na burocracia aliada ao desleixo como a ferramenta necessária para, aos poucos, apagar as memórias do que foi a instituição.
A professora Larissa Arbués, pontua que a Lei n° 10.216, de 2001, conhecida como Lei Antimanicomial, por si só, não conseguiu abranger todas as necessidades do amparo em saúde mental, que foi sendo fortalecido através de portarias e outras legislações. Para ela, existe um recuo nas conquistas a partir do momento em que há investimento em internação, em detrimento do modelo de cuidado em liberdade. “Mesmo que no papel chamem isso transitório, eu acho que são retrocessos”, ressalta.
Apesar de extenso, o arcabouço da legislação ainda não consegue garantir que o retrocesso não acontecerá. “A gente teve esse marco importante em 2001. Crescemos com isso até por volta de 2010, mas eu penso que depois outras forças políticas contribuíram para um recrudescimento com reinvestimento no modelo de internação”, defende Larissa Arbués.
Esse ambiente confuso pode ser um fragmento do primeiro impulso que sucedeu as demais normas sobre a assistência psiquiátrica. Segundo a professora Larissa Arbués, o primeiro texto que mais tarde seria a Lei Antimanicomial, tinha uma proposta muito mais radical, mas a essência foi sofrendo alterações ao longo dos 12 anos em que o projeto ficou em tramitação no Congresso Nacional até ser aprovado.
Larissa Arbués explica que, no modelo em que foi aprovada, a Lei 10.216 consegue suprir as questões da proteção das pessoas com transtornos psiquiátricos, mas não desenha o modelo de rede de atendimento ideal - e ideias assim já eram discutidas nos fóruns sobre o assunto muito antes da lei entrar em vigor.
“Os estudos apontam uma estatística assustadora. De 2017 para frente, em 20 anos, a cada grupo de 10 pessoas, 6 terão algum transtorno emocional ou uma doença psiquiátrica”. A fala da ex-vereadora e ex-titular da Secretaria de Direitos Humanos de Goiânia, Cristina Lopes, mostra como os transtornos mentais não são uma realidade distante, como alguns podem imaginar. Muito pelo contrário, a sociedade e a loucura possuem laços antigos que estão cada vez mais interligados.
O método de tratamento em hospitais psiquiátricos possui atualmente uma lógica de atendimento, em termos legais, diferente da que foi aplicada no passado. A Lei Antimanicomial define que o paciente pode ser internado através de três vias: “I - internação voluntária: aquela que se dá com o consentimento do usuário; II - internação involuntária: aquela que se dá sem o consentimento do usuário e a pedido de terceiro; e III - internação compulsória: aquela determinada pela Justiça”.
“Art. 8º
– A internação voluntária ou involuntária somente será autorizada por médico devidamente registrado no Conselho Regional de Medicina – CRM do Estado onde se localize o estabelecimento.
§ 1° – A internação psiquiátrica involuntária deverá, no prazo de setenta e duas horas, ser comunicada ao Ministério Público Estadual pelo responsável técnico do estabelecimento no qual tenha ocorrido, devendo esse mesmo procedimento ser adotado quando da respectiva alta.
§ 2º – O término da internação involuntária dar-se-á por solicitação escrita do familiar, ou responsável legal, ou quando estabelecido pelo especialista responsável pelo tratamento.”
O tempo médio de internação psiquiátrica estabelecido pelo Ministério da Saúde é de 30 dias. Além disso, é exigido que a internação seja feita a partir de um laudo de médico especializado com descrição minuciosa das condições do paciente que ensejem a sua internação, consentimento expresso do paciente ou de sua família e as previsões de tempo mínimo e máximo de duração da internação.
Apesar dos grandes passos estabelecidos pela política ao longo das décadas que se passaram após o fim dos antigos manicômios, há, ainda, muitas falhas no sistema de amparo à saúde mental. Cristina Lopes aponta que, na prática, os hospitais atuais ainda se assemelham muito às antigas estruturas. “É uma herança que ainda não foi rompida, pelo menos aqui na nossa capital do Estado de Goiás”.
Para Cristina Lopes, essa política ainda é muito frágil e não consegue garantir o atendimento adequado para os portadores de doenças psiquiátricas. Ela relata que, em Goiânia, ao longo dos últimos anos houve uma queda de qualidade nas estruturas de atendimento em saúde mental.
Após a consolidação da Lei Antimanicomial, os modelos de tratamento psiquiátrico para substituir os formatos hospitalocêntricos foram fortalecidos, como Centros de Atenção Psicossocial (Caps), que já existiam, mas tinham pouco espaço no âmbito do tratamento psiquiátrico. Nessa forma de atendimento, o doente psíquico passa a ser tratado pela ótica da reabilitação psicossocial e não pelo asilamento sem perspectiva de alta.
Conforme o Ministério da Saúde "os Centros de Atenção Psicossocial (Caps) nas suas diferentes modalidades são pontos de atenção estratégicos da RAPS: serviços de saúde de caráter aberto e comunitário constituídos por equipe multiprofissional que atua sob a ótica interdisciplinar e realiza prioritariamente atendimento às pessoas com sofrimento ou transtorno mental, incluindo aquelas com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, em sua área territorial, seja em situações de crise ou nos processos de reabilitação psicossocial e são substitutivos ao modelo asilar”.
O primeiro Caps do Brasil, batizado de Professor Luís da Rocha Cerqueira, surgiu em 1986, em São Paulo. O espaço se propunha a trabalhar para evitar internações, acolher os ex-internos de hospitais psiquiátricos e oferecer atendimento psiquiátrico pautado em novas ideias que surgiam nesse período — a década de 80 foi marcada por eventos cruciais na história da psiquiatria brasileira, como a 8ª Conferência Nacional de Saúde (1986), a I Conferência Nacional de Saúde Mental (1987) e o II Congresso Nacional dos Trabalhadores de Saúde Mental (1987).
Larissa Arbués explica que o Caps foi importado do modelo italiano de psiquiatria. No entanto, a inspiração mais forte para o Brasil foram os centros de atenção psicossocial da Nicarágua, que surgiram também na década de 80, durante a revolução sandinista.
Em Goiânia, o primeiro Caps foi inaugurado em 2000, na efervescência da aproximação da promulgação da Lei Antimanicomial, e, atualmente, existem nove espaços desse modelo na capital. Celita Cirino, que é coordenadora do Caps Noroeste, explica que a unidade onde atua acompanha 518 usuários na modalidade Álcool e Outras Drogas (AD) e 1036 em Transtornos (T). Ela ressalta que a maior parte dos usuários são atendidos por depressão, transtorno bipolar, além de uma parcela considerável de esquizofrênicos.
A unidade é recente, foi inaugurada em 2013, e, segundo a coordenadora, conta com um atendimento multidisciplinar composto por terapeutas ocupacionais, assistentes sociais, psicólogos, enfermeiros, farmacêuticos e psiquiatras.
Os 1036 usuários atendidos na modalidade de transtorno recebem o tratamento presencial no período diurno. “Eles vêm, participam das atividades terapêuticas e voltam para casa”, explica Cirino. Há, também, o acolhimento noturno, voltado para os viciados químicos. Nesse formato, que disponibiliza 15 vagas por vez, os usuários voluntariamente permanecem até 14 dias na instituição para o tratamento, conforme avaliação da equipe técnica.
Caps Noreste | Vídeo: Thauany Melo
A coordenadora conta que acredita unicamente nesse modelo de atendimento psiquiátrico e aponta que ele está constantemente ameaçado.
O ex-paciente do Hospital Adauto Botelho e atual usuário da rede Caps, Sebastião de Paula, conta que ele considera essa forma de tratamento em liberdade muito mais eficaz em comparação ao formato manicomial. “É uma rede que nunca pode acabar”, ressalta.
Sebastião de Paula considera que, no processo de tratamento psiquiátrico, o suporte da família é fundamental e o atendimento no Caps valoriza esse vínculo.
Em janeiro de 2020, durante seu mandato como vereadora, Cristina Lopes visitou os Caps de Goiânia. Ela afirma que percebeu, de modo geral, diversas falhas nas estruturas dessas instituições que sofrem com a falta de recurso financeiro para se manterem. “São coisas que mostram o desprezo por aquela política de atenção à saúde, mas não é falta de recurso. O dinheiro do SUS é suficiente, ele só não é bem empregado de maneira adequada”.
Cristina Lopes diz que durante os anos de 2013 e 2020, notou uma redução no direcionamento de verbas para essas unidades. Para ela, isso demonstra que esse modelo ainda não é valorizado o suficiente. “Tenho muito temor de que retomem aqueles depósitos humanos que eram esses hospitais psiquiátricos”, diz.
Larissa Arbués defende que o campo da saúde mental nunca foi uma prioridade para a política, afinal, o número desses eleitores não é expressivo. “Doido não dá voto. A gente ainda não dá voz, ainda não dá espaço de escuta. Alguns desafios importantes são a própria participação social desses usuários, organização em associações, para que eles consigam amplificar a voz deles”, destaca.
A professora diz ainda que para o avanço seria necessário o alinhamento com o modelo psicossocial nos níveis municipal, estadual e federal. Que todos tivessem o compromisso com a manutenção de uma rede de assistência fortalecida e em acordo com a reforma psiquiátrica, com a inclusão e com o respeito.
Conhecer a história de algo ou alguém é fundamental para a construção de uma versão melhor no futuro. Larissa Arbués lembra que, no âmbito da psiquiatria, especificamente no Adauto Botelho, houve muito sofrimento gerado em nome de um modelo de tratamento que modificou as pessoas. E não apenas pacientes. Os profissionais que atuaram no Hospital também precisaram endurecer para lidar com aquela realidade. “Eu, no lugar de acadêmica e na estrada como militante, vejo que a gente deve para a sociedade algumas contas, porque às vezes a gente não está conectado com as histórias”, diz.
A professora acrescenta que, apesar da destruição física, ainda há nas referências de assistência à saúde mental muitos fragmentos do passado.